20090728

Pena, deitada coitada





-«Eu sempre fui muito amada João.»
Dizia-me ela , quando depois de me contar os seus desencontros amorosos, eu sentia pena dela.
Dizia-lho.
Ia aos arames.
Não queria que tivessem pena dela.
Que ter pena têm as galinhas, e que ela não precisava que eu tivesse pena dela, ela não era nenhuma coitada.
Debalde me esforçava para explicar que a pena é um dos sentimentos mais nobres e extraordinários do ser humano, que é um partilhar da dor do outro, uma com – paixão.
Hipnotizado pelo cheiro da sua boca e pelo esperma quente no rosto interior de minha coxa perdia-me em pensamentos.
«Então porque te comportas assim com os homens? …» perguntava a mim mesmo…

Como boçal trolha magoado, as suas palavras nestas alturas, na sua alma não eram doces carrosséis.
Espécie inferior masculina que só serve para foder e usar como fulminante para a pena dos outros.
Várias vezes lhe apanhei as tragédias por sms, para a irmã, para as amigas, para a mãe, onde era de mim que falava, mas onde eu não me reconhecia a mim próprio remotamente sequer como personagem participante, tal não era a sua imaginação para o drama, especialmente para o papel da vitima, que só assim a turba lhe dava o biscoito e a salvação através da pena que troca o aplauso, eu que pela pena lhe abanei a vaidade.

Verdadeiras urdiduras filigrânicas de modo a aparecer aos olhos das amigas, irmã e mãe como uma parcela da equação cósmica, ela e o Universo, ela e o destino
Susana Pascoal, só luta contra a Providência. Nada mais, nada menos. A luta é agreste, fá-la penar.

Andei umas semanas ruminando na coisa. Ocupado com este pormenor, na minha tarefa geral e doentia de lhe mapear a forma psicológica de existir.
A determinada altura ocorreu-me…os homens que deixava chegar mais perto eram as promessas de Redenção, por palavras outras, eu, os outros somos o algodão com água oxigenada na sua vida.


O Baptismo a Confissão limpam a lama dos pecados passados também os homens passados e presentes são para a minha pequena ginasta, a catarse da sua imagem a seus olhos, da mãe, das amigas.
É tão mais fácil dizer que os homens são uns cabrões, nenhum se aproveita, que dizer que ‘destroço’ é o nome do nosso espírito e coração.

Que repetitivo, pensava eu…vulgar a forma de operar.
Sem deixar de ser terrivelmente interessante.
Outrora em tempos idos, outra havia conhecido, Dora de nome.
Seu pai também a havia abandonado e havia feito gato e sapato da mãe.
Dizia alto e em bom som, como trolha magoado, que os homens haviam magoado e feito sofrer a mãe, agora fazia ela sofrer os homens.
Modus operandi recorrente, cama e carácter.
Na cama desenvolvem o que mais acham que agrada aos homens que na alcova dominam e no Inferno desejam, e uma dramatis personnae construída para povoar a imaginação admirada e deslumbrada de tão fáceis e pobres mancebos.
Por isso o apetite pelos mais novos…
Vi este cocktail tanta vez em andamento, funcionando á minha frente.
Com a Dora um mancebo da Força Aérea que representava dramas e paradas nupciais, para nós aspirando a que Dora visse, na residência ao pé da Imprensa Nacional, e num pardieiro qualquer em Viseu.
Com a Susana, era só olhar a trela que ela dava e o feedback que recebia, do seu séquito, de onde vinham os biscoitos, de todos aqueles que serviam para enfeitar a sua tiara, do mesmo telemóvel com que mandava á irmã as mensagens queixando-se que não conseguia confiar em mim, que a luta era titânica, entre o amor e as traições cometidas pelo objecto de amor (eu), que o próprio desconhecia…lado a lado com mensagens de imagem de mancebos se masturbando para ela, e imberbes surfistas que lhe queriam fazer ‘malinhos’ depois de noites passadas num carro junto á praia.

Tive e tenho uma sorte que agradeço todos os dias, tenho privado com pessoas interessantes assim.
Dir-me-ás caro leitor, que lido com bipolaridade, loucura, mas não. Não, lido com o sal da Terra, a loucura não é tão coerente, e nem tu percebes nada disto.

Como necrófago vou-me alimentando destes vestígios de extraordinário putrefacto tentando retirar de algures o algo que me faça entender o que quero entender e por vezes o individuo é apenas o veículo da minha compreensão.
São jogos meu senhor são jogos.
Jogos jogados connosco para nós.
Jogos dentro da nossa cabeça com a cabeça dos outros..
Algodão com água oxigenada lava as feridas e os plásticos, branqueia e desinfecta , e as amigas:
«Coitada, pois é tens razão, são todos iguais, que azar amiga…»
Amigas de data longa, habituadas a posarem para as outras através de sonhos embasbacados de mancebos de pila fácil e coração tenro, e aí Susaninha era rainha.
Mais longe, mais alto, morais como foder com os ex é mais asseado e seguro, ou fodi fazendo o serviço público de ajudar a sentir homem um tipo fraldoso, admite que me lês…são tiros certos para que te apaixones.
Eficaz heroína lendária na hipnose sedutora, dos homens que são todos iguais, de novo luta de Susana contra o Universo, ela conhece e controla o Mecanismo…
Tão terrivelmente fácil que até dá pena.
Assisti em surdina, a eles caírem que nem patos, com os meus olhos onde ela jogou os seus, na Covilhã por exemplo.
Bastava sentar-se numa mesa, e sorrir ocasionalmente, não era preciso sequer falar.
Um, dois, três, ficam magneticamente hipnotizados, encadeados com aquela luz que é uma violeta perdição para as moscas num varandil.
1º teste.
No fundo do baú encontrei a personagem indicada a representar, corno. Fiz-lhe uma anatomia, vesti o traje com ultraje ostensivo, e levei-a dali, de forma a chumbar propositadamente o teste de tão esmerada princesa.
Sabia que o segundo teste estava destinado a ser ainda mais humilhante e rebaixante, e não me enganei, depois de percorrer ostensivamente sem ultraje bocas de mulheres e homens numa discoteca, tomei-a para casa, representando o papel de corno bravo, mas no fundo deliciado com este pedaço de ser humano que se revelava a mim.
Agradeci a Deus, ou à personagem encarnada pelo Universo contra qual Susana luta.

Estas amigas juntam-se no ambiente onde mais á vontade se sentem discos e Lux’s, quem consegue o maior número de mancebos, recebe o prémio da noite, o biscoito do valor, numa representação de série B de uma qualquer ‘O sexo e a cidade’ em versão parola com jovens actrizes porno na fase descendente.

O algodão com água oxigenada lava as feridas e os plásticos quando a paciência de irmãos pais e mães está perto da lâmina do suportável, ou quando a imagem que as acossa é demasiado pesada de suportar, mulheres livres porque fodemos quem queremos quando e como queremos foder.

Qualquer tipo apresentável e minimamente inteligente serve, tem de se subir a parada.

Mana, não aguento mais, não consigo confiar nele, foi a conclusão a que cheguei depois de ter pensado até ás cinco da manhã no carro de outro.
Mãe, eu mereço ser feliz, o azar que eu tenho, depois de me esfregar como gata lânguida por meia discoteca e balcões.
São seres abjectos que é preciso esmagar debaixo de poses de ginasta enquanto os fodo.
Merda de raça, exemplares a que ofereço revelações como a de que o meu namorado me fazia vir oito vezes, e ainda me quer foder e de vez em quando fodo com ele, e manda-me mensagens ainda, e já não fodo ao som da banda sonora da cidade dos anjos, nem saio de cima de ti quando o telefone toca.
A pena que não queria sentida em mim, queria-la despertada nos outros julga-se superior a mim o cabrão que não é cavalheiro.
Vives na imagem que julgas ver nos olhos de quem odeias, odeias-te a ti própria afinal, é este o cliché em que me esfreguei á tua frente.



Quantas vezes não posso ver as borboletas que fazes com a mão nem sentir apesar de tudo o que fazes com a miséria do teu choro, perdido entre nenhures e lugar algum, deitados na cama atraiçoámo-nos a nós próprios, perdidos em todo o lado e no fundo a pena que sentimos te cobre o dorso todo, e em segredo revelámos que és um anjo de hoje, vives e levas ao extremo de ti a pena da tua sorte escrevendo com a pena do teu sangue, és o sal da Terra e vais mais longe mesmo que no fim do Ocaso, é com o teu coração que pagas.

Os mortos também dançam Susana.

20090217

Coração de Vidro



Esperei que a luz decadente me tocasse.
O Sol há muito que se havia desinteressado desta realidade aqui tão perto de nós.
É preciso o lombo de um animal de carga para olhar para a incontornável solidão. Amar é dar-me ao outro fugindo do infinito até ao infinito da solidão.
Viro a cara como malandra insegura quando me misturo aqui no corredor agora acessível, em frente a Anglísticos roubo fotões de luz ao chão à parede aos cacifos, às cadeiras. É parida uma sombra filha do meu assalto.
Disseste que ias para obras. Ias reconstruir tudo. Não sou tua dona.
Vim para aqui para estudar e tenho de andar a apanhar memória flácidas estéreis e secas pelo chão.
A ubiquidade toma um nome como se também ela tivesse direito à reencarnação.
O nome é ‘TU’.
As primeiras palavras judicativas que cuspiste da tua boca para a minha foram ‘És insaciável!’, fiquei tão magoada, porque não existe saciedade para quem ama.
E quando bamboleavas o corpo para o teu amigo, o porteiro do 7Mares…tu ali toda enrolada com ele e nós sabíamos que só dançavas para mim.
O cheiro forte a old spice fazia-me espirrar, prefiro o teu aroma a frutos silvestres, e o teu hálito a esferográfica molin.
Quantas vezes nos deitámos juntas e quando acordava tinhas sumido…
Quantas vezes meus amigos fingiam não te ver quando ias de braço dado comigo, mesmo até me deixaram de falar…
Nunca pagavas bilhete de autocarro e o revisor fazia uma cara estranha quando eu pedia e pagava dois bilhetes.
Linda barriga é a tua, ia até ao Inferno por ela.
Vi logo que gostavas do jogo.
As duas na cama, não consegui deixar de sorver nos teus seios.
O abraço que te dava, sentia-lo como meu à volta da minha própria pele.
Sempre foste a parte mais emotiva de mim, aquela que sonha quando ao cair da tarde o Sol faz festinhas no rosto e as cigarras se calam com a brisa fresca.
Sempre fui…
Com o cabo da escova partiu o espelho em que nos víamos, caí em pedaços estilhaçados com força pelo soalho.
Espalhada como memórias flácidas estéreis e secas elo chão, como as que tenho dela, eu sei, eu é que sou real.

20090115

Síndroma de



Crazy (letra)

I remember when, I remember, I remember when I lost my mind
There was something so pleasant about that place.
Even your emotions had an echo
In so much space

And when you're out there
Without care,
Yeah, I was out of touch
But it wasn't because I didn't know enough
I just knew too much

Does that make me crazy
Does that make me crazy
Does that make me crazy
Probably

And I hope that you are having the time of your life
But think twice, that's my only advice

Come on now, who do you, who do you, who do you, who do you think you are,
Ha ha ha bless your soul
You really think you're in control

Well, I think you're crazy
I think you're crazy
I think you're crazy
Just like me

My heroes had the heart to Lose their lives out on a limb
And all I remember is thinking, I want to be like them
Ever since I was little, ever since I was little it looked like fun
And it's no coincidence I've come
And I can die when I'm done

Maybe I'm crazy
Maybe you're crazy
Maybe we're crazy
Possibly





I

Cara e coroa, primeira parte.

Quando era novo tive sorte.
Descobri, por acaso, o livro da minha vida.
Eu e meus pais, havíamos mudado recentemente de casa, e no recheio vazio descobri um velho e amarelo livro como as solitárias asas de traça que o habitavam.
«Destroçado» era o título, e José Mendes encarnação o autor.
Mais que uma história corrida de episódios eróticos era a história sentimental de quem a contou.
Em dois anos, o tempo que demorou até que o famoso livro se transformasse em pó, não li outra coisa.
Apaixonei-me pelas paixões na primeira pessoa. Gelei com as desilusões. Jubilei com os prazeres como se fossem meus.
Acima de tudo deixei-me cair no caldo profundo da psicologia em jogo. No abismo profundo da alma humana.
A primeira frase do desaparecido livro, é uma frase tumular.
«Sempre tive a maior das facilidades em fazer apaixonar e desapaixonar, nunca amei.»
Revirei até hoje, que velho e amarelo já estou como as asas das traças, todas as implicações e consequências, possibilidades desta frase. Com o meu sangue e com a memória.
Corri os amores da adolescência com uma confiança de atleta, ombreando com o autor do livro que tanto me impressionara percorrendo mulheres à procura dos gastos pedregulhos que formam o caminho.
Sinto agora que este livro sempre me protegeu, salvando-me com suas mãos descarnadas para fora do absoluto, onde seria desfeito pelo desgosto e evitando-me o relativo, onde aprenderia apenas o insípido.
O autor sabia.
É inútil escrevinhar teorias acerca da mente humana. A Natureza não é apreensível senão por meio de um sonho mentiroso.
O autor sabia que seduziria o imberbe mancebo leitor em sonhos de fantasia de suor doce pueril e nocturno, em teorias vigorosas, mas que no fim da caminhada estaria o sorriso de olhar para trás. Levado à letra, amor não é senão arsénico. Misturemo-lo com doce vinho da terra.
Que tarefa deliciosa e inútil…falar de amor.
Toda a gente quer falar de amor. É o sonho mais doce da promessa de ninfeta à matrona mais anciã. Varia o grau de entrega.

Quem não dá o que tem, perde o que não dá.

Agora que o meu sexo é defunto, e o meu apetite amarelo como as asas de traça, resta-me o conforto de veludo da rememoração. É porque sei que nada é eterno senão a eternidade, que consigo perdoar com lágrimas nos olhos e amor incondicional todos os pormenores que lembro de mágoa e alegria.
Perdoar, que arrogante, vejo agora.
Que privilégio ter privado, sentido, pensado, tudo o que me foi dado, antes de jazer no quarto escuro do esquecimento.
Que brilho fascinante do pulsar.
Descobrir o género humano através do amor, ou da falta dele.
Amor, palavra pirosa que dizia por mimetismo, mas cresceu em mim, como música pimba que se ouve pela primeira vez.
Começou pelo canto da boca contra o Sol poente.

II

Pela alma.
Sangue e esperma.
Tinha-los espalhados pelo interior das coxas, no baixo-ventre, no peito, e até nas mãos.
A noite havia ardido como pavio no arfar dos corpos ofegantes, e agora…já só restava a indolência das gónadas vazias.
Os primeiros sorrisos amarelos da manhã indecisa despontavam pela janela.
As manhãs de Verão são quentes e acompanhadas pela esperança de que duas horas antes do meio-dia ainda esteja fresco o suficiente para não suar.
A pele pegajosa e exausta pede por água, mas ao sentir outro corpo desnudo encostado a si, transmite impulsos muito profundos além do véu da razão, que despertam em surdina e em quarto crescente o desejo da cópula.
Na sua anca minha mão coloco, puxando-a para mim, e sei que é na boca que devo começar para acabar no frenesim menos original de todos, que desejo.
Todas as bocas cheiram a vida presa de manhã.
Arrancada do sono com a promessa de mais prazer, ela volta-se inconscientemente contente, por ver-se mais uma vez desejada.

III

Há um Sol do anonimato a quem ninguém escapa.
Às vezes só damos por ele, quando alguém vagamente conhecido morre, e essa pessoa ao cair sai da posição entre nós e o Sol, e é só quando ele, o Sol, nos começa a queimar a cabeça e a pele, que damos pela existência do outro, e mediatamente, que também podemos morrer.
Antes que consigamos dar pela falta do outro, só pela falta que a sombra útil dele nos faz, já suspeitamos e viramos a cara ao facto de que dê por onde der, o tempo da nossa existência é um tempo para a morte, um contra relógio a favor do tédio.
Uma dança de línguas é uma orquestra sem sentido.
Tédio. É a suave dialéctica dos colhões e do cerebrelo.
«-Livre.», dizem eles…só os castrati são livres.
Cantam ópera e os colhões nunca enchem.
Tal como a onda,que vem antes e depois de outras anónimas ondas, e se desfaz anónima na areia, e volta anónima e com o rabo entre as pernas, submissa para o lugar de onde veio, também os colhões enchem até nos povoarem os sonhos e sair pelos ouvidos, tal como crescemos arrogantes e confiantes, amadurecemos desconfiados e envelhecemos sentidos.
E a nossa razão pináculo civilizacional, orgulho bacoco, ou nega o corpo ou deixa-se perder pelo desejo do desejo.
Sou capaz de estar no meio das pernas de uma mulher e dizer que a amo, e cinco minutos depois não lhe consigo olhar para a cara, tal é o poder em mim, da força da vida.
Esse é o peso, a sombra do anonimato sobre qualquer amor futuro.
Olho eu para os olhos de Susana, com os corpos molhados de suor dos nossos corpos, e o feno húmido da tépida chuva ancestral, a trovoada que ao longe compete com o canto da cigarra.
Mascamos folhas de louro, fazemos uma coroa e planeamos amor futuro, sabendo cada um em si que os olhos brilhantes de um no outro são os falecidos no porvir, fazemos amor no feno, corro nu pela terra quente recém arada e ejaculo num sulco de terra negra onde me deitei de barriga e braços abertos e agradeço orando a Gaia tudo o que me deu, dá e dará.
Susana realmente ouve o que digo, não espera que me cale para continuar a falar.
Sabe que estou infectado de anonimato e morrerei de tédio.

IV

Quando penso em ti com mais força, sei que é porque estás a pensar em mim.
Em relação a ti, tudo o que seja menos que tudo, para mim é nada.
O teu cheiro o teu sabor a tua língua os teus braços.
Lembro-me desses momentos fugazes como lágrimas na chuva.
Tenho post-it’s espalhados pela casa e no pára-brisas do carro, lembretes para não me esquecer de respirar.
Copo atrás de copo, bebo este whisky tão velho como o meu amor, na esperança que após engolir o sabor da tua boca já não esteja na minha, debalde…como fantasma residente que se recusa a aceitar que morreu.
Escrevo-te e para ti escrevo. Escrever é um minete que te faço, preciso de fazer, gostas de receber.
Despidos, na tua cama, mascamos folhas de louro, fazemos duas coroas, e coroamo-nos funebremente como rei e rainha de uma timocracia de paixão.
Na praia perto de tua casa apeteceu-me mergulhar na água, orgias de mosto e fetilidade.
Desejei erguer um templo assim mas vivi apenas à sombra de uma forca no pelourinho.
O ocaso levou-te para longe de mim e a sombra do infinito veio fazer-me frio de novo quando entrava em casa, em Lisboa, pela 25 de Abril.

V

Bestial idade.
Sodomizar esta moça que geme de prazer agarrada às almofadas, é o único motivo de me encontrar aqui. Correndo atrás da novidade de inserir meu falo no orifício primo da vulva a que esta moça não se opõe e com vontade adere, vejo-me agora pensativo neste frenético momento rítmico de sodomização. Orifício sui generis este, que me presenteia com alguns aromas sazonais do interior da toca. Não posso com ela e só estou aqui para me oferecer de novo à experiência na esperança de que surja algo de novo para mim debaixo do Sol.
Ao envelhecer torno-me calculista olho para a mulher objecto de desejo objecto de sexo objecto de adorno. Este calculismo enfraquece a pujança de sermos uma força, o tempo a vida vicia-nos, faz com que acalentemos as manhas. Falta a força desenvolve-se a astúcia podre.
Perco o viço e atraiçoo-me na minha anterior pessoa de criança.
Há quem lhe chame crescer e aprender a gerir recursos, há quem diga que é desejar o absoluto com forças relativas.
Ceder, eu chamo-lhe ceder. Ceder a tudo o que é mundano, mesquinho e fraco, autênticos contorcionistas morais, autóctones do cinzento, vivo com a minha essência projectada fora de mim, no reino do esquema do calculável do sonho adulto reactivo onde as lacunas sexuais do adolescente se tornam florescentes obsessões do homem maduro.
Fecho-me neste mundo de fantasia e afasto-me dos outros que se afastam de mim.
Talvez seja eu um mau homem, ou um homem sem escrúpulos, talvez seja resultado da nossa época que reduz tudo a uma relação de lucro ou prejuízo.
Isto é um certo tipo de dependência que avilta, pois queremos algo que o outro tem, queremos tudo, mas algo apenas nos chama.
A sofreguidão mecânica revela a tal ânsia recolectora de experiências em intimidades alheias, não sou um cemitério ou biblioteca bafienta sou um célebre jardim onde se relembram os frutos do passado.
Sou um cemitério. A vida não continua após a morte quando eu queria que a vida vivesse para sempre, só fora do tempo vale o tempo a pena. Apaixonados de nós numa projecção no futuro.
Não consigo viver no deserto da incerteza nem num baldio de certeza a prazo.
VI



A fumar um cigarro, alternava os olhos pela parede e pelas folhas das canas plantadas em frente da minha casa pobre de subúrbio.
Não consigo dormir, e só recordo a minha comunhão com a Natureza quando era miúdo, e me espojava nos tufos de erva sob o Sol quente e simpático, a olhar o azul do Céu tão azul e cristalino que me fazia lacrimejar, nos braços da minha materna amiga Terra.
Ouço-lhe agora a voz no abano das folhas laminadas dançarinas de um ballet russo ao vento e melancólico, fora do tempo.
Este vento promete Outono, em princípio de Verão. Lembra-me os Outonos passados, quando era miúdo, quando ansiava pela novidade, por voltar a vestir os casacos de molho que esperaram meio ano, para voltarem a abraçar as costas de alguém.
Lembro-me do passado e encho-me de volúpia, porque o que não volta dá sentido épico à vida, e este vento soprou há milhares de anos e se o Criador quiser continuará a soprar.
Dá-me sempre vontade nestas ocasiões, de ir nu sentir o vento acariciar-me sentir a temperatura o cheiro sentir a presença do que me envolve.
Novamente volúpia, pelo fresco que não frio, a força vital manifestando-se sem mediações, o prazer da Natureza, que sinto, manifesta-se nos testículos que se encolhem couraçando a pele.
Diminuem, tornam-se humildes, e com a diminuição das gónadas torna-se o espírito maior e anseia como desde sempre a fusão com o Todo.
Menti-te, não estou a fumar. Eu não fumo. Estou sentado a escrever.
Mas o cigarro por vezes também te relaxa, para fazer meditar asfixia o fresco, que só sentirás nos tomates ou na vulva, ou em ambos, conforme o caso. Mas o fresco foge-te do peito e da alma, o cigarro não deixa o espírito voar com o vento, prende-te na carcaça velha da nicotina a fazer das dela mesmo por debaixo dos olhos.
Numa carcaça velha de uso e tempo, a que alguns chamam de autocarro, ouvi-mos:
-Acabei com os machistas…Golo!
-O Shéu e o Damásio, Golo!
O embalar do movimento nas curvas leva a que batas com a cara no ar trespassado a cheiro de suor entranhado dos cortinados verdes, onde durante o dia as cabeças se escondem do Sol quente e nada simpático, e durante a noite dormem, transformando o pano em improvisada almofada.
Adivinhamos o vómito lavado no chão que se enrola com um cheiro a bagaço, que espreita pela garganta do senhor, e retorna à toca dentro do seu peito. Seu after shave também navega por ali, sendo bem mais alcoólico que o álcool.
-Andei na OTA a seguir, …Golo! Golo!
A diáfana luz que não compete com os candeeiros laranja lá fora torna ainda mais este purgatório migrante ainda mais decadente e desgastado.
-Economista – Golo!
Olha para ver se alguém lhe acha graça, ou presta atenção.
Olha tu também.
Tem para aí quarenta ou cinquenta anos, bigode à velha guarda, hálito a cota do bagaço, cheiro pessoal geral a Macieira, perfume barato, pele velha e roupa limpa.
O boné vermelho, juvenilmente transvestido, contrasta com a austeridade do bigode. Podes ver a pulseira desmesuradamente grande no franzino braço moreno.
Ténis da praça de pseudo marca mimética no nome, calças cor de leite, já com muito pouco café.
Cola autocolantes do aeroporto nas janelas e deita os papeis para o chão, mostrando ou querendo mostrar – o que achas? – que andou na barriga do pássaro de ferro.
Foi o Sol, ou o bagaço, que o comeram por dentro?
O que achas?
Entretanto fumo um cigarro na companhia de bancos estropiados por mãos de adolescentes, também elas bailarinas russas de um ballet de assinaturas hieroglíficas.
Só estradas e prédios.
Os suburbanos, inóspitos habitantes destas paragens, descarregam a nau dos loucos, ordeiramente, e rumam em direcção aos lares entardecidos, deixando no autocarro a sua lembrança codificada em aromas de óleo gasto em batatas fritas testemunhando a gordura que acabamos por sentir nas mãos.
O boné vermelho tem escrito ‘SPZ Centro’.
Olho para cada paragem, antes de também eu rumar ao entardecido lar, para apreciar o mulherio que vai pernoitando.
Entra uma aparentemente boa, não dá para ver se tem a carne rija, ou se é mais um milagre dos panos. Desdentada dos incisivos, enverga uma camisola leopardo de cetim onde se adivinham os mamilos, esses sim, rijos.
Outro dia, outra gaja. Com fios de cabelo que parecem um sedoso tecido colado ao crânio, caem em cascata para dentro de um elástico de roxa cor espreguiçando-se depois em leque no delta dos seus ombros. As orelhas aconchegam a cascata e um fio de ouro sulca o pescoço.
Vivemos rodeados por muralhas porção de gente rodeada por muralhas por todos os lados.
Vivo preso numa luxúria que acarinho e alimento.
Sou tão anónimo, sabes?
Que farás quando me vires agora que te contei tudo?